domingo, 11 de janeiro de 2009


O português bonacheirão, hospitaleiro e de "brandos costumes" é o estereótipo do português médio, retratado e perpetuado desde a intelectualidade bacoca ao imaginário colectivo. Em qualquer época que se fale da história nacional, o português é sempre retratado como um Zé Povinho.

Pós-romano, Medieval, Renascentista, Moderno, Contemporâneo ou Pós-Moderno, o Zé Povão lá aparece, submisso e idolatra às elites, incapaz de mostrar uma vontade de mudança vincada, o povo português é, segundo os apologistas dos "brandos costumes", figurante na sua própria História, deixando essa na mão dos aristocratas, clérigos, militares, industriais, políticos, patrões, empresários e self-made men cá do burgo que ao longo do rumo da nação se têm alinhado para tomar as lides da vida civil.

Não importam as revoluções, as sublevações sociais, o activismo que levou a política à rua e todas as desobediências civis que fizeram a nossa História, o espírito português actual modela toda a acção das anteriores gerações à nossa apatia, à nossa submissão e falta de espírito crítico.

Não somos um povo "pacífico", a história do nosso povo é uma de democracia, que se revelava quando as populações não encontravam amarras psicológicas para quebrar o status quo.

Agora apenas somos ordeiros, um rebanho bem doutrinado e ensinado a não pôr em causa o que está estabelecido, a dar liberdade total e absoluta às nossas elites e a adorá-las pela forma como gozam connosco e nos retiram o que é nosso por direito, fruto do nosso trabalho.

Aquando o grupo de jovens Verde Eufémia atacou uma propriedade agrária privada que cultivava transgénicos, coros de gente indignada, idolatras e submissos à autoridade e à hierarquia, hipócritas até ao tutano, condenaram este acto de desobediência civil num país habituado à "carneirada". Paulo Varela Gomes, professor de arquitectura e cronista do Público, disse de sua justiça num texto genial:

«A reacção - histérica - ao caso de Silves (...) é um caso dos mais interessantes acontecidos em Portugal de há muito tempo para cá. Neste país de cobardolas, qualquer gesto decidido assume de imediato foros de escândalo. Neste país que enterrou uma revolução debaixo de um manto de mentiras, silêncios e cumplicidades traidoras, qualquer recordação - por mais ténue - daquilo que se passou em 1974-75 cheira a ameaça insuportável.

Neste país onde os poderosos violam a lei todos os dias, onde a polícia e os tribunais servem sobretudo para ajudar os poderosos a não cumprir a lei, onde a lentidão e ineficácia dos tribunais criam um estado de não-direito, ninguém se lembra de exigir que seja aplicada toda a força da lei (de imediato! rigorosamente!) quando os salários não são pagos, os patrões fogem aos impostos, as empresas e os bancos defraudam os cidadãos. Mas ai de quem puser o pé num centímetro quadrado da sacrossanta propriedade privada agrária, esse símbolo por excelência da Ordem multi-secular.

Que extraordinário país! Um povo todos os dias enganado, roubado, o mais pobre da Europa, o mais ridículo. E nem um carro incendiado, nem uma montra partida, nem um protesto violento. Dóceis como carneiros, que é naquilo que foram treinados, é aquilo que são - envergonham-me vocês, oh ordeiros de dedinho sentencioso no ar e voz tremeluzende de indignação só porque meia dúzia de miúdos resolveram violar a lei. Pode não ter sido correcto o que os miúdos fizeram, mas mostraram mais coragem que vocês todos juntos. Respeitem ao menos isso: que ainda haja portugueses capazes de arriscar alguma coisa por aquilo em que acreditam. Respeitem ao menos quem é capaz de um gesto.»

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