terça-feira, 23 de setembro de 2008

Aqui deixo um texto sobre a actual crise financeira mundial, da autoria de Rui Tavares que escreve para o Público na sua «Crónica sem dor».














* O Professor Pangloss foi uma personagem criada por Voltaire(acima)

«Gestor Pangloss

Enganados de novo. Andámos durante estes anos a aturar os consultores da Merryl Linch, os gestores da Lehman Brothers, os génios financeiros da Goldman Sachs - para vermos, numa só semana, qu enem da casa deles sabem cuidar.
Quantas vezes os ouvimos dizer que tínhamos de "desregular", ou que havia controlos demasiado "rígidos" sobre o mercado, ou que não tínhamos dinheiro para pagar saúde aos cidadãos, ou a universidade aos estudantes, ou que os privados fariam melhor com as nossas pensões de reforma? Pois bem, o contribuinte americano deve estar bem lixado, neste momento, ao ver que o dinheiro que não havia para reparar pontes e diques já terá que aparecer para safar todo o sistema financeiro desregulado.
E no entanto há sempre crentes. Tal como havia membros do Politburo que se felicitavam pela robustez da RDA enquanto o Muro de Berlim caía. Alberto Gonçalves, no DN, supõe que as "falências sejam sintoma do perfeito funcionamento" do sistema.
António Borges continu a defender a privatização da Segurança Social, alegando que as pensões privadas nos EUA não entraram em colapso, só perderam grande parte do seu valor. E o programa de John McCain diz que o sistema de saúde deve ficar mais parecido com o sistema financeiro.
A ideia é que as falências sucessivas são uma purga "natural" e que a seguir à desregulação temos de desregular mais ainda. Esta gente era capaz de viver na Idade Média e não só dizer que a peste negra era uma coisa óptima como defender que a cura era esfregar os abcessos bubónicos uns nos outros.
No séc. XVIII, Voltaire criou o Professor Pangloss, personagem que representava o filósofo dogmático que, por mais desgraças que visse - massacres, estupros, escravidão -, dizia sempre que "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis". Não seria difícil recriar, hoje em dia, a personagem do gestor Pangloss ou do político Pangloss. A tua empresa faliu e foste despedido? Isso é estupendo, porque o mercado se liberta espontaneamente das ineficiências. Os bancos deram cabo do jogo? É a purga necessária após um período de exuberância. Houve gente que perdeu casas, seguros de saúde, pensões de refoma? Wunderbar! Tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. Estás a morrer de uma infecção generalizada? Sim, mas repara que as bactérias fozam de excelente saúde.
Esta gente fala em desregulação e liberdade mas não percebe que viver sob o jugo destas empresas de sucesso é levar uma vida de regras leoninas, em letra miudinha, em que não resta liberdade alguma para o cliente, o empregado que lhes deu o tempo da sua vida ou o contribuinte que vai ter de lhes salvar o couro. Se há azar, chama-se-lhe ajustamento e espera-se que todos fiquemos saciados com a explicação. Pela mesma lógica, também o terramoto de 1755 foi só um ajustamento das placas tectónicas.
Aos sofistas do mercado falta-lhes entender o que dizia Protágoras: "o Homem é a medida de todas as coisas" - para si mesmo naturalmente. Mas é de nós que estamos a falar. O maravilhoso funcionamento da teoria fez vítimas na prática. Esta é a medida última: não o mercado, não as empresas, não o sistema financeiro - mas as pessoas.»

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