terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

De como se fabricam as crises

Em 1993, o Canadá via-se cercado por notícias que alertavam para um «muro de dívida» que se iria abater sobre o país caso não fossem tomadas previdências.

A «catástrofe financeira» provinda da «crise do défice» assolava os canadianos com frequência cada vez que na televisão ou nos jornais os "peritos" e os "economistas" tinham a palavra. Falava-se até na possibilidade da Moody's e da Standard & Poor's baixarem o rating da economia canadiana e os investidores estrangeiros retirarem o seu dinheiro do país de forma galopante e repentina.

A Statistics Canada argumentava que a «crise» era causada pelas «altas taxas de juro, que fizeram explodir o valor da dívida». Logo surgiram vários Messias com a solução. Corte nos gastos públicos como a saúde, a educação, seguros de desemprego e programas sociais.

Curiosamente, Vincent Truglia, analista sénior da Moody's para a economia canadiana, afirmava que «considerava o Canadá um investimento excelente e estável», apesar de ter recebido telefonemas de grandes empresários e bancos canadianos para «emitir relatórios negativos» sobre a situação económica do Canadá.

O facto do rating canadiano se manter estável e elevado dificultava a tarefa de manter os canadianos amedrontados, mas com todo o celeuma gerado e que continuava a pairar nos mercados, Truglia decidiu fazer um «comentário especial», no qual explica que «vários relatórios publicados recentemente exageram grosseiramente a posição da dívida fiscal do Canadá. Alguns deles contaram o número duas vezes, enquanto que outros fizeram comparações internacionais inapropriadas(...). Estas medições incorrectas podem ter desempenhado um papel nas avaliações exageradas da seriedade do problema da dívida do Canadá».

Após o seu comentário, Truglia recebeu um telefonema zangado e aos gritos de um membro de uma grande instituição financeira do Canadá. Algo que nunca lhe tinha acontecido.

No entanto isso não impediu o Capital canadiano de atingir o seu objectivo. O Governo, na altura liderado pelo Partido Liberal, cortou a eito nos subsídios de desemprego e apesar das várias mexidas nos orçamentos desde então, o valor perdido nunca mais se recuperou.

Mais tarde, foi posto a descoberto que a crise tinha sido manipulada e nunca tinha havido «muro de dívida» nenhum. Mas o estrago já estava feito.

O Carnaval só agora começou

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O que escondem as palavras


Por detrás do desígnio de «modernização do secundário» esconde-se negócios como os que o Público revelou hoje, no qual ficamos a saber que a maioria das escolas secundárias deixarão de ser património do Estado para passarem a fazer parte da empresa pública Parque Escolar.

Manuel Tiago, deputado do PCP, já previu que «no futuro, será a Parque Escolar a gestora de todas as escolas e se um dia o Governo decidir privatizá-la, o parque escolar passa a ter uma gestão empresarial». Num sistema de ensino com gestão empresarial, os encarregados de educação têm de pagar pela educação dos seus filhos, o que acontece com as escolas impostas em Nova Orleães depois do Katrina.

Numa escola com gestão empresarial, também não há lugar à participação dos professores na estruturação pedagógica das escolas e os sindicalistas são perseguidos com ameaças de despedimento.

Quase todos os grupos se insurgem contra esta medida, desde a FenProf, a Frente Nacional de Educação, o Conselho de Escolas e a Associação Nacional de Dirigentes Escolares. Só a Confederação de Pais sai em defesa desta política, mas para quem conhece um mínimo que seja a Confap, esta é um associada do Partido Socialista.

Para compreendermos a natureza do Parque Escolar, basta tomar atenção à adjudicação de obras nas escolas a empresas privadas, no valor de 35 milhões de euros, onde se encontram inúmeras parcerias de empresas de construção civil, sendo que uma delas, a Britalar, tem na sua direcção o antigo administrador da Parque Escolar entre 2001 e 2007, Saraiva Menezes, «mão direita» do presidente do Braga e presidente da mesa de concelhia de Braga do CDS-PP.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Os sinais do Mercado

Actualmente, perante a crise de dívida que se está a abater sobre a Grécia, Irlanda e dentro em pouco, Portugal, muito se fala das reacções dos mercados financeiros e das consequências destas nas dívidas públicas.

A lógica é que quando a "coisa" parece estar em vésperas de implosão, os mercados castigam os países através do rating da dívida, passando a ser mais difícil ao país pedir empréstimos no estrangeiro. Como não podia deixar de ser, os adeptos do Mercado Livre não questionam a autoridade das instâncias, como se a sua Razão fosse inabalável à Memória. Não é raro referirem-se às instituições do Mercado Livre e suas linhas ideológicas como o garante da "transição democrática" do Leste Europeu e das "ditaduras de Direita".

Numa altura em que também se celebram os 20 anos da libertação de Nelson Mandela, que levou à derrocada do Apartheid, é um curioso exercício saber quais foram os "sinais" dos mercados financeiros ao fim do regime branco.

No exacto dia em que Mandela foi libertado, os mercados entraram em pânico e causaram a desvalorização do rand, moeda sul-africana, em 10%. Mais tarde a companhia de diamantes De Beers mudou a sua sede da África do Sul para a Suíça e em 1996, já com a democracia instaurada, o rand desvalorizou 20% num só mês, além do «capital» que estava a sair do país com os «ricos e nervosos do país colocavam o seu dinheiro em contas no estrangeiro».

As reacções do Mercado eram de um histerismo tão ridículo que após Mandela mencionar a nacionalização das minas de ouro sul-africanas numa reunião com homens de negócios, o All-Gold Index, índice de referência do ouro, caiu 5%.

As fortes mensagens do Mercado Livre, deram cedo a entender às figuras de topo do Congresso Nacional Africano, movimento de libertação deste país, que se não queriam um país mais pobre quando atingissem o poder teriam de negociar com as multinacionais do antigo regime e os economistas das instituições internacionais.

O medo da miséria mais abjecta levou o CNA a estabelecer uma política de compromisso com os interesses económicos globais e que suportavam o apartheid. O compromisso foi desde a independência do seu Banco Central, liderado por Chris Stals, o mesmo homem que o chefiara na ditadura; à impossibilidade de levar a cabo uma reforma agrária que redistribuísse as terras, de nacionalizar os «bancos, minas e indústrias de monopólio» ou até de subir os salários.

Entre outras concessões, ficaram por cumprir o perdão internacional da dívida pública deixada pelo regime do Apartheid e a criação de um imposto de solidariedade, com o qual as multinacionais que lucraram com a segregação ajudariam as famílias das vítimas.

Em contra-partida, o CNA lançou um plano público para a economia que o próprio Thabo Mbeki apelidou de Thatcherite. Era digno das terapias de choque que os liberais portugueses desejam para o país: «privatizações, cortes nas despesas do Estado, "flexibilidade" laboral, comércio mais livre e controlo monetário mais folgado.»

O resultado do plano está à vista, hoje, os sul-africanos são mais pobres que no tempo do Apartheid e os projectos públicos implementados foram abandonados a meio por falta de recursos.

O próprio Wall Street Journal afirmou que «o Sr. Mandela tem, nos últimos dias, ficado mais parecido com Margaret Thatcher e menos com o socialista revolucionário que em tempos se pensou que ele era», após este ter afirmado na sua primeira entrevista como presidente que «não há um único lema que nos ligue a qualquer ideologia marxista». Vê-se.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

cuidado!...eles são perigosos...


A Helena Matos, uma das nossas liberais de cartilha, vem hoje escrever no Público que o "terrorismo" de origem europeia não acabou e que se tornou mais perigoso, recorrendo actualmente à acção directa em protestos e manifestações.

Obviamente, não lhe incomodam as limpezas populacionais patrocinadas pela "Santa" América e seus compinchas espalhados pelos quatro cantos do mundo, ao longo do século XX e que continua hoje com cada vez mais força.

Como boa liberal que é, nem sequer lhe passa pela cabeça que exista uma correlação entre a proletarização da juventude europeia e a tal reorganização dos grupos «terroristas», como ela lhes chama.

Ao conectar os protestos de massas à "ameaça terrorista" expõe a sua vontade de proibir quaisquer manifestos contrários ao Capital e às suas terapias de choque, o desejo mais profundo dos liberais para pôr fim ao Estado Social, que eles apelidam de "Socialismo". Não enganam ninguém.

Os adeptos do Mercado Livre consideram os grupos revolucionários perigosos. Essa é a prova do seu medo e do nosso sucesso futuro.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O Estado dentro do Estado



As notícias que nos têm chegado da tentativa do governo PS de estabelecer um poder omnipotente nos órgãos de comunicação social revelam-nos mais uma faceta de um "polvo" que se vai revelando aos poucos, sem nunca aparecer na sua totalidade.

Os ataques à liberdade de imprensa por parte do PS, não são diferentes do silenciamento de Marcelo Rebelo de Sousa por Santana Lopes e das perseguições aos jornalistas no governo de Cavaco Silva.

Mas também não diferem dos lugares oferecidos aos "boys and girls" dos partidos que governaram Portugal nos últimos 33 anos, na Mota Engil, na PT, no BES e no BPN, nem das trafulhices dos submarinos, dos sobreiros e do Freeport.

Estes actos não são separados da acumulação de riqueza pelos grupos financeiros e da perda do poder de compra dos trabalhadores. Ou da proliferação das empresas de trabalho temporário, até a sua utilização pelo Estado, das benesses fiscais a quem paga o salário mínimo e dá um contrato de seis meses aos seus assalariados ou da expansão de um sistema de vigilância constante sobre os cidadãos.

É o natural resultado do domínio dos grupos económicos sob o sistema político português através dos seus comissários políticos: PS, PSD, CDS.

Eu devo ser bruxo...

«O novo conservadorismo americano» - El País.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Dividir para reinar

Um espectro paira sobre a Europa...as críticas aos funcionários públicos. Na Grécia, Portugal e Irlanda congelam-lhes e reduzem-lhes os salários. As manifestações em defesa dos direitos destes trabalhadores proliferam, mas o discurso do «todos temos de fazer sacrifícios» já está tão entranhado nas consciências que os próprios trabalhadores do sector privado criticam as acções dos funcionários públicos, por serem indiferentes ao sacrifício geral, desdenhando-lhes a estabilidade laboral e as garantias.

Os trabalhadores "privados" já não lutam por ter um emprego estável e que pague bem, mas que os funcionários públicos tenham as mesmas condições miseráveis que eles. Entretanto, os seus patrões compram um novo Audi ou deslocalizam a fábrica para o Leste. É o triunfo da invejazinha, outra virtude moral do capitalismo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Ah, mas o que é preciso é mais "flexibilidade" laboral!


«
Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal» - Christophe Dejours

Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.

Claro que no outro extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.

Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante a doença mental.

O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo?
O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.

Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?
Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.

No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.

O que é que mudou nas empresas?
A organização do trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.

A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”

Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…

Mas o assédio no trabalho é novo?
Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.

Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?
São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.

Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.

Uma formação para o assédio?
Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.

Está a descrever um cenário totalmente nazi...
Só que aqui ninguém estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser impiedoso, uma aprendizagem do assédio.

Penso que há bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se dessa maneira.

Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?
É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total.

Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.

E os sindicatos?
Penso que os sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.

Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?
É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.

Quando é que isso aconteceu?
Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar.

A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções.

Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.

Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.
Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.

Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.

Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade?
Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho.

A Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia.

Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer.

Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.

Aconteceu sem pré-aviso?
Houve um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa. Mas ela não queria parar, insistia que queria fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela.

Nos testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava sexualmente as mulheres e esta mulher era muito bonita. Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque se tinha recusado a fazer o que ele queria.

O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?
Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.

Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?
Não há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho. Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em sítio nenhum.

Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo.

Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.

Falou de “qualidade total”. O que é exactamente?
É uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho.

É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.

Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.

Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal.

Em diabetologia, por exemplo, os gestores introduziram a obrigação de os médicos fazerem, para cada um dos seus doentes, ao longo de três meses, a média dos níveis de hemoglobina glicosilada A1c [ri-se], que é um indicador da concentração de açúcar no sangue. A seguir, comparam entre si os grupos de doentes de cada médico – é assim que controlam a qualidade dos cuidados médicos. [ri-se].

Só que, na realidade, quando tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e temos de perceber porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que não consegue respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui legumes e não féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não tem dinheiro para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.

Da mesma forma, se um doente diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros fusos horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina. Mais uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.

Mesmo uma central nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de “trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor não quer ouvir falar disso.

Ora, quando o ideal se transforma na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se está a obrigar toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho. Deixa de ser possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas. Quando há um incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.

Isso é extremamente grave.
É. E em medicina passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.

Há muitos suicídios entre os médicos?
Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.

É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.

Os médicos sempre foram considerados uma classe muito solidária…
Foram. Já não são. Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.

O que é importante perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as nossas defesas que deixaram de funcionar.

Portanto, as ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação pelo medo.
Sim, o termo exacto é dominação; são técnicas de dominação.

Então, é preciso acabar com essas práticas?
Eu não diria que é preciso acabar com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo a individual. Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o que é quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há avaliações que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser interessante e as pessoas não são contra.

Mas sobretudo, a avaliação não deve ser apenas individual. É extremamente importante começar a concentrar os esforços na avaliação do trabalho colectivo e nomeadamente da cooperação, do contributo de cada um. Mas como não sabemos analisar a cooperação, analisa-se somente o desempenho individual.

O resultado é desastroso. Não é verdade que a qualidade da produção melhorou. A General Motors foi obrigada a alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a Toyota teve de trocar um milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os clientes porque descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total japonesa?

Hoje, nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.

Temos de aprender a pensar o trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o analisar, avaliar – para o cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho colectivo como cooperação, como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar isso no trabalho, ficamos com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a evitar a violência, aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a ouvir o dos outros.

Não haverá por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito empresarial?
É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.

Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.

Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.

Qual é a diferença entre taylorismo e fordismo?
Taylor inventou a divisão das tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada tarefa, de uma intervenção da direcção, através de um capataz. Há constantemente alguém a vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A palavra-chave é obediência. “Quando eu disser para parar de trabalhar e ir comer qualquer coisa, você vai obedecer. Se concordar, será pago mais 50 cêntimos pela sua obediência.” A única coisa que importa é a obediência. O objectivo é acabar com o ócio, os tempos mortos.

Só muito mais tarde é que Ford introduziu uma nova técnica, a linha de montagem, que é uma aplicação do taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias.

O toyotismo [ou Sistema Toyota de Produção] utiliza um outro método de dominação, o ohnismo [inventado por Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É um método particular que extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito mais subtil que o taylorismo, que apenas estipula que há pessoas que têm de obedecer e outras que mandam.

No ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados “círculos de qualidade”.

O sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios, pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais.

Mas há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias, reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias. Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles tinha um emprego vitalício garantido na empresa.

O sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso de trabalho”].

O que é o karōshi?
É uma morte súbita, geralmente por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas que não apresentam qualquer factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não sofrem de hipertensão, não têm níveis de colesterol elevados, não são diabéticos, não fumam, não são alcoólicos, não tem uma história familiar de AVC. Nada. A único factor que é possível detectar é o excesso de trabalho. Estas pessoas trabalham mais de 70 horas por semana, sem contar as horas passadas nos círculos de qualidade. Ou seja, são pessoas que estão literalmente sempre a trabalhar. Mal param de trabalhar, vão dormir. As descrições de colegas que foram fazer inquéritos no Japão são aterrorizadoras.

O mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos – porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.

As famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –, deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões. Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.

Mas uma coisa destas não é aplicável na Europa
Não, pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a certeza.

Mas acha que poderia acontecer?
Sim, acho que poderíamos lá chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz, não há uma fatalidade, não é a mundialização que determina as coisas, não é a guerra económica. É perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de outra maneira, e há empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de preservar o “viver juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem puramente de gestão. O que não impede que a tendência seja para a desestruturação um pouco por todo o lado. É difícil resistir-lhe.

Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade.

Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas.

E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

O que fizeram?
Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas.

Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.

Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto.

Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.

Versão integral da entrevista publicada no PÚBLICO»

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

"Teabaggers", fruto do Século 20

Ultimamente, um movimento direitista ultra-conservador estado-unidense, de seu nome «tea party», tem estado sobre os holofotes nos EUA. Arranjaram o nome da sublevação popular ocorrida em Boston, a 16 de Dezembro de 1773, quando colonos deste país atiraram carregamentos de chá ao mar, protestando contra a «taxação (de impostos) sem representação», levada a cabo pelo governo britânico em todo o seu território imperial.

Os "teabaggers", membros do movimento actual, juntam os lugares-comum do capitalismo, baixos impostos, pouca regulação estatal e cortes nas ajudas sociais coloridos com um ethos de responsabilidade pessoal, com o fanatismo do mais retrógado McCarthismo que vigorou no século 20 nos EUA.

O seu discurso ultra-nacionalista corporiza o ideal da nação determinada pela História e a sua missão de expandir os ideais políticos, económico e religiosos pelo resto do mundo. Ainda que a "liberdade" seja um dos seus grandes slogans, esta é, obviamente, circundada à liberdade capitalista de tudo comprar e de tudo vender, a liberdade do mais forte perante a horde de fracos.

Até aqui, nada de novo, que não se possa encontrar no republicano médio e mesmo em larga parte do Partido Democrata. Em que difere então os "teabaggers" de hoje, do resto do cenário político? Uma conjugação de factores que legitima o seu discurso. Os "teabaggers" são abertamente racistas.

É visível o desdém com que se referem à população afro-americana, mandando-lhes bocas como «não compreenderem porque votam pessoas que nem sabem soletrar "votar"». A exigência de testes cívicos que garantam o direito a votar lembra os mesmos existentes na lei de segregação racial até esta ser revogada nos anos sessenta. A presidência de Obama, um afro-americano, e a sua tentativa de impor um sistema de saúde alargado toca os pontos mais sensíveis da ideologia estado-unidense. Ainda que a proposta nada tenha a ver com um sistema nacional de saúde, parte dos americanos não lhe hesita em apelidar de «socialista», «marxista» e que tais. Ao ter no poder um afro-americano, os saudosos do regime segregacionista, de repente, ganharam o charme da rebeldia "anti-sistema". A xenofobia também ganha asas no novo "tea party" ao pedirem maiores restrições à imigração.

O facto mais deslocado de todo o movimento e que contribui para a sua posição extremada no espectro político é o de partir dos grupos das "teorias da conspiração" da Nova Ordem Mundial. Segundo o qual, o Capital aproximaria o mundo de um governo global concentracionário e ditatorial através da introdução aos poucos de crises e guerras que garantiriam a legitimidade das suas medidas. Se tudo isto tem um fundo de verdade e é um objectivo à muito desejado pela Burguesia internacional, o que surpreende é que haja alguém que realmente acredita que os maiores capitalistas a nível mundial queiram, segundo os "teabaggers", implantar o socialismo.

A sua influência já se fez notar com a eleição do senador Scott Brown no estado de Massachussets e a histeria que trazem ao debate sobre a reforma de saúde de Obama. O canal Fox News alimenta-os e já criou com eles uma relação simbiótica, sendo que uma das suas colaboradoras, Sarah Palin, é a candidata ideal dos ultra-conservadores.

Esta particular hipótese é facilmente posta de parte, mas não deixa de corresponder às reais movimentações do Capitalismo global de assegurar poder total em todo o mundo, desde a queda do único bloco que o desafiava seriamente, a Europa Socialista.

Os quadrantes sociais do «Tea Party» são vários, mas o perfil do seu membro médio, o branco de classe média, parece corresponder à crescente proletarização dos trabalhadores estado-unidenses, que já não poupa nenhum sector da população.

Kurt Grossweiler, historiador alemão que estudou a ascensão do Nazismo na Alemanha, afirmou que em certos momentos históricos, o «fascismo» atraía a pequena-burguesia e certas partes do proletariado.

Os "teabaggers", ainda que apelando contra um suposto "fascismo global" e um retorno ao estado original pristino do país, encarnam os valores da burguesia nacional, da superioridade da nação e até o racismo e a xenofobia seriam convenientes ao capitalismo estado-unidense.

Caso voltasse a realidade jurídica da segregação racial e se acicatasse a perseguição aos imigrantes, o patronato deste país poderia contar com uma porção de mão-de-obra altamente precarizada e disposta a tudo para manter uma qualidade mínima de vida.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Do Investimento do Estado

De acordo com uma reportagem do Público, o «investimento directo» do Estado caiu 70% em relação ao início da década, representando agora, apenas 1,6% do PIB, sendo que dessa percentagem, 0,6% provém de dinheiros comunitários.

Em contrapartida, as parcerias público-privadas proliferaram nos últimos anos e têm seguido um método universal, de custo para o Estado e benefício para a empresa privada. Desta forma, com o dinheiro dos impostos, hipotecou-se a sustentabilidade dos serviços públicos ao mesmo tempo que se criou uma classe de empresários dependentes dos negócios com o Estado.

Da situação de falta de receitas públicas, o Estado quer congelar os salários dos funcionários públicos enquanto Sócrates acaba de efectuar 1361 nomeações «em pouco mais de três meses».

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Ah, mas o que é preciso é mais mercado livre!

Com todo o burburinho à volta da lei das Finanças Regionais, em que o governo PS executou o seu habitual ritual de "ai que eu caio! ai que eu caio!", muito se tem repetido o mito de que a Madeira é das zonas mais ricas do país, juntamente com Lisboa, e que por esse motivo o dinheiro estatal não seria necessário.

Por distracção ou má fé, ainda ninguém reparou que os dados estatísticos da economia madeirense estão trapaceados, contando-se o dinheiro existente no off-shore juntamente com o da economia real. E na economia real da Madeira, existem 20% de pobres. Um número que partilha com Portugal continental e em todo o território e caso não fossem as ajudas sociais, a taxa real de pobreza atingiria os 40% da população.

Curiosamente, num país europeu que nos habituámos a acreditar que era dos mais pobres no continente, a Bielorússia, no qual 80% da economia é controlada pelo Estado e que com o presidente Lukashenko nunca abandonou o caminho do socialismo, a taxa de pobreza ronda os 7,3%. Desde 2001 a 2008, a Bielorússia desceu o seu número de pobres, de 41,9% para os 6,1%. A crise financeira mundial atingiu a economia nacional e fez subir a pobreza para a taxa já referida.

Longe do culto do empreendedorismo e da sanha privatizadora cada vez mais dominante nas medidas e discursos políticos em Portugal, a fidelidade bielorussa ao socialismo valeu-lhe uma eficiente redução da pobreza, melhor do que a da República Checa, o país que tem menos percentagem de pobres na União Europeia, 9%.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O mundo contra nós

Luís da Silveira, presidente da Comissão de Protecção de Dados Pessoais, vem dar uma entrevista reveladora para o público.

«Luís da Silveira A pressão para o acesso aos dados pessoais é global

Os cidadãos são cada vez mais tratados como se fossem todos suspeitos

O presidente da Comissão de Protecção de Dados Pessoais diz que a lei chega sempre mais tarde que as tecnologias e que a concentração da informação é um cocktail explosivo

Há câmaras por todo o lado, as informações pessoais constam de bases de dados que os cidadãos não conseguem controlar e muitas empresas conseguem fazer perfis ao pormenor dos consumidores. Estarão os dados pessoais em risco de ir parar a mãos perigosas? O cenário não é bom, diz Luís da Silveira, mas não é catastrófico. E alerta para o papel que cada um tem no controlo da informação sobre si que anda por aí espalhada.

Que situações de recolha de informações pessoais são hoje preocupantes que levam a comissão a classificar o cenário como “inquietante”?


O cenário é inquietante porque há situações que em conjunto significam um constrangimento importante da privacidade dos cidadãos. A videovigilância, que se está a banalizar, a utilização de dados biométricos (impressões digitais, imagem facial, a íris, o cheiro). Temos exigido que se trate de sistemas fiáveis, que não admitam a reconversão do código informático da impressão digital no esquema real da impressão digital.

E a geolocalização?


Está na moda. A mais usada é através de RFID - identificação por rádio frequência. O carro em que o trabalhador se desloca leva um chip que transmite sinais para a central da empresa e esta sabe onde é que aquele carro está em cada momento. A razão apresentada é a gestão de frota. Mas passam a saber onde está o trabalhador, onde parou para tomar café. Estamos a discutir se isso é legítimo para controlar os menores: formalmente, os pais têm direito a reger os filhos, mas às crianças não deve ser também reconhecido o direito à privacidade?

Os trabalhadores têm que dar consentimento.


Sim, sempre, mas o consentimento do trabalhador nunca é muito fiável, porque não é suficientemente livre. Só por curiosidade, onde isto já está a ser utilizado nas pessoas é numa discoteca em Barcelona: metem um chip debaixo da pele, entram na discoteca à vontade e debitam logo no cartão os consumos. As pessoas aceitam muito mais coisas do que a gente possa imaginar.

Estabelecer um limite é cada vez mais difícil?


Sim, até porque são cada vez mais difíceis de mensurar os interesses de segurança em jogo e a verificação de que a privacidade está a ser afectada. É enorme a pressão de entidades de investigação criminal obterem informação para realizarem o seu trabalho policial e ter provas em tribunal. Os bodyscanners dos aeroportos são a última polémica.

A questão já foi posta à CNPD?


Ainda não em termos formais. Os EUA estão a pressionar a Europa para os adoptar. Da nossa parte dizemos “Atenção!”, há um bulir da privacidade, porque apanha as próteses, os implantes mamários, os sacos pós-operatórios. A simples circunstância de se despojar a pessoa das suas vestes é humilhante, e, se isto se aceita, depois onde é que se vai parar?

Esta comissão chumbaria?


Eu sou apenas um membro. Dentro dos critérios da comissão, muito provavelmente esta será a perspectiva. Isto é um sistema para aplicar a todos: parece que somos todos suspeitos.

Os EUA acabarão por fazer vingar a sua pressão?


Eu esperaria que não. Os EUA têm uma percepção diferente sobre a protecção: entendem que os dados pessoais são para girar, é isso que faz mexer a economia, e só em certas áreas são muito defensores da privacidade - abusos contra crianças e defesa de segredos comerciais. Tirando isso, não há uma lei de protecção de dados, nem qualquer entidade à maneira das europeias.

Há algo que garanta que os dados não são divulgados?


Nada, de facto. Este é o problema da globalização.

Há um laxismo em relação à exposição?


Há um desvalor. Os adolescentes são muito ciosos da sua privacidade em relação aos pais mas são extremamente abertos para fora, gostam de mostrar a sua privacidade aos colegas e amigos.

É possível acompanhar com leis a velocidade a que se introduzem novas tecnologias?

Há a questão problemática e perigosa da nanotecnologia. A lei chega sempre tarde. As tecnologias têm andado sempre à frente da lei.

Em que áreas é urgente legislar?


O importante não é legislar sobre uma tecnologia, mas sobre as suas aplicações, como no chip de matrícula, que é por RFID. Talvez faça sentido o legislador pensar se as recomendações da Comissão Europeia já estão maduras. A Comissão é o fiel da balança? É a sua obrigação. O que nós tentamos dizer é a necessidade de o nosso Parlamento acompanhar a legislação que está a ser feita a nível europeu. Sabemos nós que posição é que os portugueses estão a defender nos grupos europeus? Está o Parlamento português a cumprir o seu papel de fiscalizar, de saber e acompanhar o Parlamento Europeu?

Gostava de trabalhar mais de perto com o legislador?


Temos procurado fazê-lo. Apesar de os nossos pareceres aos diplomas legais não serem vinculativos, até hoje a assembleia tem tido em conta a nossa opinião. Pode ter havido discordância, com certeza que há e ponderada. Mas na generalidade acompanham.

A concentração passiva de informação sobre os cidadãos é um perigo quase tão grande quanto o terrorismo?


Não sei comparar, mas lá que cria riscos acrescidos, cria, sem dúvida. Temos tido sempre particular cuidado e preocupação quando nos são apresentadas pretensões de grandes bases de dados. Há sempre o risco da fuga de informação e utilização indevida com finalidades perversas, por qualquer poder. É um cocktail explosivo.

Os dados pessoais em Portugal estão hoje protegidos?


Do ponto de vista legal, sim. Foi a primeira Constituição a protegê-los. A grande questão é a aplicação e isso é da responsabilidade da Comissão, mas é claro que a protecção de dados não pode estar assegurada por uma equipa de 30 pessoas. A defesa dos dados pessoais tem que começar sempre nos próprios., nunca chegarão os tribunais e instituições deste género para o garantir.

Se metade dos pedidos é de videovigilância, os portugueses estão hoje com medo?


O sentimento de insegurança se calhar não corresponde à insegurança existente, agora que esse sentimento se instalou não há dúvidas.

E é aproveitado para cada dia se apertar esse direito à privacidade?


É sempre mais fácil quando temos medo. É isso que temos visto estar a acontecer a alguns níveis. E por isso dizemos que o número de pedidos de videovigilância é desproporcionado.

Somos de facto tratados como suspeitos?


Não há uma perspectiva generalizada, o que acontece é que em relação a certas iniciativas, até parece que somos todos suspeitos. Como nos bodyscanners: todos os que vão andar de avião são suspeitos?

Aplicadas 260 multas

Violação de dados pessoais deu 745 processos durante 2009
A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) aplicou no ano passado 260 multas na sequência de processos de violação da protecção de dados, num total de 540 mil euros. Foi o valor recorde aplicado pela CNPD nos últimos cinco anos. o número de processos tem vindo igualmente a subir consistentemente desde 2000.
Em dez anos, a comissão abriu 3407 processos de contra-ordenação, que incluem queixas de cidadãos, participações de várias autoridades - PSP, GNR, ASAE, Direcção-Geral do Consumidor, Autoridade para as Condições de Trabalho, entre outras - e também averiguações abertas por iniciativa própria da CNPD. Entre 2007 e 2009 os números de processos quase aumentou, de 413 para 745. Mas a lista da evolução mostra que os portugueses estão cada vez mais preocupados e cientes dos seus direitos em relação à protecção dos seus dados pessoais, realça o presidente daquele órgão, Luís da Silveira.
“A arma mais forte é a sensibilização. A Comissão pode abrir processos e passar multas aos violadores da lei, e tenta chegar a todos os lados, mas não pode chegar a tudo. Tem de partir do próprio cidadão que tem definir até onde quer, se estiver consciente, for informado e ainda assim quiser abdicar da sua privacidade, quem somos nós para lho negar?”, questiona o responsável. Esse trabalho, salienta, tem que ser feito sobretudo junto das crianças e jovens, que cada vez mais se expõem na internet, por exemplo.
Por isso a CNPD tem um projecto pioneiro na Europa, que já abrange centenas de escolas por todo o país: criou um personagem, o Dadus, um rapazinho adolescente, que está nas redes sociais e interage com pais, professores e alunos através do seu blogue e das suas páginas nas redes sociais, alertando-os para a necessidade de protecção dos dados pessoais.
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